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A mãe imperfeita

Porque a maternidade é difícil. E as mães precisam de rir.

A mãe imperfeita

Porque a maternidade é difícil. E as mães precisam de rir.

09
Abr18

Parir: toda a verdade!

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Se é verdade que cada vez mais as mulheres vão tendo a coragem (ou a inteligência) para deitar cá para fora todas as dificuldades ligadas à maternidade e, com isso, começa a desmistificar-se o conceito de coisa maravilhosa que até há uns anos dominava as mentalidades, também é verdade que há partes de que ninguém tem ainda coragem de falar. São partes mais fisiológicas, menos limpas e, talvez por isso, são partes que deixam as mulheres profundamente constrangidas. Não sei se muitas vezes as mulheres acham que são as únicas a quem estas coisas acontecem ou se a vergonha é de tal ordem que decidem ignorar esses factos e pronto.

 

Antes do Pedro nascer gostava de imaginar o parto como uma coisa mais ou menos asséptica. Sabia que a probabilidade de acontecerem "acidentes" era alta mas, confesso, preferi mentalizar-me que me ia escapar desse número. Admitia um puto todo cheio de sangue e vérnix (aquela argamassa esbranquiçada que os bebés trazem agarrada) mas pouco mais que isso. O resto empurrei para um cantinho da mente. Mas, como sempre na minha vida, tudo aquilo que eu menos quero acaba por bater-me à porta e, portanto, o meu parto foi, como é que hei-de dizer, o mais sujo possível vá.

 

Ora bem, comecei a indução às 8h30' do dia 20 de Novembro e, a primeira etapa foi exactamente aplicar dois microlax que a minha colega me deu. Pronto, aquilo fez lá o que tinha a fazer mas acontece que a indução foi demorada e, portanto, no dia 20 ainda fiz todas as refeições a que tinha direito (ceia incluída). É óbvio que quando tive ruptura de bolsa a umas desgraçadas três da manhã tinha o raio do intestino cheio. E, assim do nada, vi-me presa a uma cama ("teve ruptura de bolsa, já não se pode levantar"), cheia de contracções e vontade de fazer cocó. Fonix. De repente tinha ali os meus piores pesadelos todos materializados. Entretanto e porque a noite estava complicada, com mais mulheres a lembrarem-se de parir, a minha cama foi coberta com resguardos de papel e as minhas colegas disseram que viriam trocar os lençóis mal pudessem. E pronto, fiquei metida num mar de líquido amniótico e resguardos e na pior das misérias possíveis tive mesmo que pedir uma arrastadeira. Ninguém merece mas a mim foi para o que me deram as primeiras contracções a sério: esvaziar o intestino. Enfim... Já parece mau, não parece? Então e se vos disser que depois comecei a vomitar a cada contracção? A única coisa que eu pensava era que não podia voltar a sujar a cama que entretanto tinha sido trocada e, posto isto, comecei a vomitar directamente para o chão ora para um lado ora para o outro. Foi assim quase surreal. E eu que queria um trabalho de parto lavadinho.

 

Enfim, o que já era mau piorou quando na hora da verdade, na parte de fazer força a sério (a mim pediram-me que fizesse força na cama ainda antes de me levarem para a mesa - onde, mais tarde, tudo viria a falhar e teríamos que seguir para cesariana), adivinhem lá o que é que aconteceu? Pois, aquilo que nos filmes e nas novelas nunca acontece. Lá é tudo cheio de emoção e amor. Na vida real também, há é depois estes bónus de merda (literalmente) que ninguém merece. Nem vos consigo descrever a vergonha que passei. Acreditem que até fiquei com medo de fazer força depois disso, estava mortificada, só pensava "porque é que isto me foi acontecer, porra?". Mas a verdade é que aconteceu.

 

Calculo que a este ponto metade das mulheres que já pariu esteja a pensar "não foste a única" e a outra metade se esteja a encolher com nojo. Se pertencem à segunda metade, parabéns; eu quando for grande também quero parir assim de maneira limpinha. Por enquanto esta foi a experiência que tive e devo ser a primeira maluca capaz de a pregar assim na internet. Mas estou cansada. Cansada de ver a parte fisiológica a ser ignorada, passada à frente como se nunca tivesse acontecido e depois, quando as merdas acontecem (mais uma vez literalmente) as mulheres sentem-se tristes, sozinhas e envergonhadas. E não devíamos, não devíamos porque há razões fisiológicas para isto tudo e porque não somos, de certeza um caso raro. Parir tem lá as suas partes bonitas mas também pode ser uma coisa do menos higiénico possível. Desculpem por assassinar assim o romance mas há coisas que precisam de ser ditas.

05
Abr18

Órfãos de filhos vivos (ou "filho és, pai serás")

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Há dois ou três dias mostrava ao Pedro uma fotografia da minha mãe e percebi, mais ou menos chocada, que ele não a reconhecia. Olhava para a fotografia atentamente mas não mostrava o mínimo sinal de reconhecimento. Fiquei a pensar no porquê, afinal aquela é a minha mãe, a avó dele e ele faz sempre uma festa enorme quando a vê. Depois apercebi-me de uma coisa que me deixou o coração muito mais que apertado; eu vejo a minha mãe assim mas a realidade é que aquela fotografia deve ter uns quinze anos e, por isso, não é assim que o Pedro a vê, não foi assim que ele a conheceu. Quando penso na minha mãe a imagem que vem à minha mente talvez não seja a mais actual, na minha cabeça ainda vejo uma mãe sem óculos ou rugas, de coluna erecta e cabelo muito preto. O Pedro conhece uma avó de óculos, com metade do cabelo a ficar acinzentado, as rugas que já vão marcando a expressão e uma coluna que começa a dobrar um bocadinho com o peso dos quase setenta anos de vida. E foi assim com uma fotografia que a verdade caiu de uma forma quase epifânica: os meus pais estão mesmo a envelhecer.

 

Talvez esta constatação seja uma das mais difícieis na vida de um filho. A noção da finitude dos próprios pais, a noção de que eles envelhecem e não são sempre a fonte de força a que estávamos habituados. De um momento para o outro há um cesto cheio de medicação em casa e a farmácia fica com uma parte importante dos rendimentos mensais, de um momento para o outro telefonamos a saber o resultados das consultas que são cada vez mais e de mais especialidades diferentes, de um momento para o outro os nossos pais queixam-se de dores nos ossos, falta de vista, tremores... E assim do nada, num tempo curto demais, estamos a organizar uma sardinhada para festejar os setenta anos do pai. E vem um medo terrível. Pior que o medo de os perder é o medo de não os acompanhar, de não os fazer sentir-se amados e importantes. Eles que deram tudo o que tinham, tudo o que até não tinham, eles que suaram a vida por nós, que estiveram sempre lá. Eles começam a precisar e nós, presos a empregos demasiado exigentes, presos às necessidades dos nossos próprios filhos e, às vezes, presos ao nosso próprio egoísmo e conforto, não estamos lá como deveríamos.

 

Na altura do Natal relatei no meu Facebook pessoal a história de abandono hospitalar que mais me marcou até hoje. Infelizmente para quem trabalha num hospital, como eu, nada há de mais comum do que idosos que são lá deixados pelos filhos dias, semanas, meses e, às vezes, até anos. Porque os filhos não têm condições, não têm tempo, não têm disponibilidade financeira, física ou mental. E até se encontrar uma instituição que os receba os velhotes vão ficando por ali, mirrando de dia para dia, morrendo todos os dias um bocadinho mais depressa porque o desgosto também mata e não há desgosto maior do que ser-se abandonado por aqueles a quem, toda a vida, se deu tudo. E se a muitos filhos a ideia do lar tranquiliza a mim repugna-me profundamente. Desconheço o dia de amanhã, tenho uma vida exigente mas não me apazigua em nada a ideia de um dia deixar os meus pais num lar. Talvez porque nunca foi isso que vi. Talvez porque uma das minhas marcas da infância tenha sido ver os meus avós lá em casa até ao final da vida deles. Vi a minha mãe e o meu pai cederem o quarto que sempre foi deles aos meus avós, vi os meus pais dormirem anos num divã porque os meus avós, a certa altura, tão doentes, já não tinham sequer condições para permanecer no mesmo quarto. E eu gostava de um dia conseguir fazer isto.

 

Gostava de ser e estar presente para os meus pais. De os poder ter comigo todos os dias, em cada momento bom ou mau. Porque eles foram tudo para mim, eles são tudo para mim e eu espero, um dia poder ser tudo para eles. Mais do que qualquer outra coisa gostava que os meus filhos, um dia, se orgulhassem de mim como eu me orgulho dos meus pais, me amassem e respeitassem como eu amo e respeito os meus. Gostava que eles percebessem que a família vem em primeiro, sempre, mais do que qualquer outra coisa. É verdade que os pais não são eternos, oxalá fossem.

 

E sim, condeno com todas as minhas forças a orfandade de filhos vivos, os filhos que depositam os pais em hospitais e não voltam, os que os deixam em lares e os visitam duas ou três vezes por ano e que nunca são capazes de os levar para passar um dia em casa, para um passeio num sítio que lhes seja querido. O lar não é o erro, é muitas vezes a única solução, o erro é achar que o lar substitui os filhos, a comida de casa e o beijo dos netos. O erro é achar que os nosso pais não são uma prioridade. Somos filhos mas também somos pais. A nossa vez chegará.

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