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A mãe imperfeita

Porque a maternidade é difícil. E as mães precisam de rir.

A mãe imperfeita

Porque a maternidade é difícil. E as mães precisam de rir.

05
Abr18

Órfãos de filhos vivos (ou "filho és, pai serás")

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Há dois ou três dias mostrava ao Pedro uma fotografia da minha mãe e percebi, mais ou menos chocada, que ele não a reconhecia. Olhava para a fotografia atentamente mas não mostrava o mínimo sinal de reconhecimento. Fiquei a pensar no porquê, afinal aquela é a minha mãe, a avó dele e ele faz sempre uma festa enorme quando a vê. Depois apercebi-me de uma coisa que me deixou o coração muito mais que apertado; eu vejo a minha mãe assim mas a realidade é que aquela fotografia deve ter uns quinze anos e, por isso, não é assim que o Pedro a vê, não foi assim que ele a conheceu. Quando penso na minha mãe a imagem que vem à minha mente talvez não seja a mais actual, na minha cabeça ainda vejo uma mãe sem óculos ou rugas, de coluna erecta e cabelo muito preto. O Pedro conhece uma avó de óculos, com metade do cabelo a ficar acinzentado, as rugas que já vão marcando a expressão e uma coluna que começa a dobrar um bocadinho com o peso dos quase setenta anos de vida. E foi assim com uma fotografia que a verdade caiu de uma forma quase epifânica: os meus pais estão mesmo a envelhecer.

 

Talvez esta constatação seja uma das mais difícieis na vida de um filho. A noção da finitude dos próprios pais, a noção de que eles envelhecem e não são sempre a fonte de força a que estávamos habituados. De um momento para o outro há um cesto cheio de medicação em casa e a farmácia fica com uma parte importante dos rendimentos mensais, de um momento para o outro telefonamos a saber o resultados das consultas que são cada vez mais e de mais especialidades diferentes, de um momento para o outro os nossos pais queixam-se de dores nos ossos, falta de vista, tremores... E assim do nada, num tempo curto demais, estamos a organizar uma sardinhada para festejar os setenta anos do pai. E vem um medo terrível. Pior que o medo de os perder é o medo de não os acompanhar, de não os fazer sentir-se amados e importantes. Eles que deram tudo o que tinham, tudo o que até não tinham, eles que suaram a vida por nós, que estiveram sempre lá. Eles começam a precisar e nós, presos a empregos demasiado exigentes, presos às necessidades dos nossos próprios filhos e, às vezes, presos ao nosso próprio egoísmo e conforto, não estamos lá como deveríamos.

 

Na altura do Natal relatei no meu Facebook pessoal a história de abandono hospitalar que mais me marcou até hoje. Infelizmente para quem trabalha num hospital, como eu, nada há de mais comum do que idosos que são lá deixados pelos filhos dias, semanas, meses e, às vezes, até anos. Porque os filhos não têm condições, não têm tempo, não têm disponibilidade financeira, física ou mental. E até se encontrar uma instituição que os receba os velhotes vão ficando por ali, mirrando de dia para dia, morrendo todos os dias um bocadinho mais depressa porque o desgosto também mata e não há desgosto maior do que ser-se abandonado por aqueles a quem, toda a vida, se deu tudo. E se a muitos filhos a ideia do lar tranquiliza a mim repugna-me profundamente. Desconheço o dia de amanhã, tenho uma vida exigente mas não me apazigua em nada a ideia de um dia deixar os meus pais num lar. Talvez porque nunca foi isso que vi. Talvez porque uma das minhas marcas da infância tenha sido ver os meus avós lá em casa até ao final da vida deles. Vi a minha mãe e o meu pai cederem o quarto que sempre foi deles aos meus avós, vi os meus pais dormirem anos num divã porque os meus avós, a certa altura, tão doentes, já não tinham sequer condições para permanecer no mesmo quarto. E eu gostava de um dia conseguir fazer isto.

 

Gostava de ser e estar presente para os meus pais. De os poder ter comigo todos os dias, em cada momento bom ou mau. Porque eles foram tudo para mim, eles são tudo para mim e eu espero, um dia poder ser tudo para eles. Mais do que qualquer outra coisa gostava que os meus filhos, um dia, se orgulhassem de mim como eu me orgulho dos meus pais, me amassem e respeitassem como eu amo e respeito os meus. Gostava que eles percebessem que a família vem em primeiro, sempre, mais do que qualquer outra coisa. É verdade que os pais não são eternos, oxalá fossem.

 

E sim, condeno com todas as minhas forças a orfandade de filhos vivos, os filhos que depositam os pais em hospitais e não voltam, os que os deixam em lares e os visitam duas ou três vezes por ano e que nunca são capazes de os levar para passar um dia em casa, para um passeio num sítio que lhes seja querido. O lar não é o erro, é muitas vezes a única solução, o erro é achar que o lar substitui os filhos, a comida de casa e o beijo dos netos. O erro é achar que os nosso pais não são uma prioridade. Somos filhos mas também somos pais. A nossa vez chegará.

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